Quando era garoto lembro-me bem quando minha mãe iniciou a vida docente. Numa comunidade humilde todas as noites, ela se dirigia a um tipo de galpão onde se realizava encontros da comunidade. Na época, eu não entendia o que era Associação de Moradores, só sabia que os moradores do bairro se reuniam no domingo pela manhã para discutir os problemas do bairro e, que se diga de passagem, eram muitos. Boa parte da minha infância e adolescência reside neste bairro e aprendi de forma não sistemática, a conviver com o descaso das autoridades governamentais, o preconceito, a marginalização, a sonhar e crer numa vida melhor.
Contudo, algo estava mudando naquele bairro, além de quererem melhorias para a comunidade, sentiam-se a necessidade de “dominar as letras”. Pode ser para quem esteja lendo esta postagem ache algo banal, mas para quem ver uma página contendo dezenas e dezenas de letrinhas um mundo mágico que se desvenda aos olhos. Dos anseios da comunidade e movida pelo desejo de uma sociedade justa; um grupo de professoras universitárias realizam um projeto de educação popular. Inspiradas na vida e obra de Paulo Freire, as utópicas educadoras decidem realizar o projeto na comunidade em que eu residia. Entusiasmada com a novidade, minha mãe, coloca-se a disposição do projeto e inicia junto com as demais professoras um projeto de inclusão social por meio da educação.
E assim, durante algumas semanas, minha mãe, às noites se dedicava a decodificar o mundo encantador das palavras para aquela comunidade. Naquele período, eu já era alfabetizado, estava cursando a 1ª série do Ensino Fundamental. Porém, não perdia se quer uma noite de aula. Era a minha diversão predileta: acompanhar minha mãe e assisti-la. Sentia orgulhoso e muito envaidecido. Oras, nem todo mundo tem como mãe uma educadora. Uma mulher “letrada”, educada. Lembro-me bem, como minha mãe era querida, admirada. Numa sociedade em plena década de 80, numa comunidade pobre, marginalizada e machista; uma mulher independente, dona do seu destino, que conciliava as tarefas do lar com uma profissão, para muitos era algo extraordinário.
Os dias iam passando e eu assistindo a dedicação da minha mãe com seus alunos. Embora, também tinha passado pelo processo de alfabetização ficava encantado com a alegria daqueles alunos, muitos deles já calejados pela vida, com o progresso que obtinha. Das mãos grossas e cheias de calos brotava as primeiras letras. Quantas pontas de lápis foram quebradas; quantas folhas de cadernos foram rasgadas; quantas folhas foram borradas pelas lágrimas de emoção a cada passo que conquistavam; quantas linhas foram preenchidas por uns garranchos que aos poucos se transformava em cidadania. Sim! Aos poucos eles estavam aprendendo como exercer a cidadania e o primeiro passo era saber como escrever seus próprios nomes. Não era somente os alunos que não queria perder um dia de aula; eu também não queria. Estava encantado com o mundo da aprendizagem e nem se quer percebia que um dia isso iria influenciar nas minhas decisões futuras.
O tempo foi passando e a cada dia convivia com o universo da educação. Não poderia ser diferente; eu era filho de uma professora. Vivia cercado de livros, cadernos, apostilas, provas e tudo aquilo fazia parte da minha vida como o ar que respiramos e a água que bebemos. Cresci e chegou o momento crucial da vida de qualquer jovem, a escolha da profissão em que irá se dedicar por alguns anos da vida. Pensei e refleti, ate que cheguei a conclusão que iria fazer a inscrição do vestibular para Pedagogia e Enfermagem. Muitos estranharam a minha escolha. Porém, é cruel para um jovem ter que decidir pelo seu futuro. Resolvi resgatar no meu ser os meus sonhos e desejos. Pensei muito sobre cada profissão, pós e contra de cada uma e as minhas condições. Embora, nossos sonhos sejam ilimitados, mas a realidade é outra. Muitas pessoas sugeriram alguns cursos, entretanto, as lembranças do passado fizeram tomar a decisão. Lembrei da dedicação da minha mãe e do amor que ela recebia dos seus alunos e assim, escolhi cursar Pedagogia.
A Enfermagem entrou na minha vida de forma de manifesto, sentia que não era só de educadores que a sociedade necessitava, mas de profissionais em saúde que pudessem cuidar com carinho de vidas. Poderia ter escolhido a Medicina; não somente, pelo poder econômico, como também, pelo status social. Quantos jovens que convivem em comunidades carentes não sonham mudar de vida e crer que a Medicina pode romper as barreiras? Segui o contrário, não desejava obter status e muito menos, dinheiro. Eu queria era ser útil. Assim, a Enfermagem entrou na minha vida, pois não é só mais uma área da saúde, mas uma atividade de amor. Iguais aos educadores, os enfermeiros exercem suas atividades com empatia e doação. O afeto e o carinho são os instrumentos que cada um destes profissionais utilizam no seu dia a dia.
Foram alguns anos convivendo com o mundo acadêmico das universidades. Pressionado, tentei, melhor, fingi que estava tentando prestar vestibular para outras áreas mais “nobres” que a sociedade tanto idolatra. Não tinha vocação para outras áreas e já concebia que uma destas áreas seria o meu alimento de cada dia. Não desisti, continuei a seguir os meus sonhos. Recebi o grau e estava apto a entrar no mercado de trabalho. Fazer a ultrapassagem da academia para o mundo do trabalho não foi fácil. Os sonhos de mudar o mundo, a sociedade; o desejo de ser útil foram aos poucos sendo minados pelas portas que foram fechadas, pelas promessas que não foram cumpridas. Aos poucos, fui percebendo que a vida adulta era mais complexa do que eu imaginava e que ter um curso superior não era garantia de emprego. Quantas críticas; quantas palavras dolorosas não escutei. Muitos faziam crer que se eu tivesse cursado a tal de Medicina/ Direito com certeza não estaria sem trabalho. Meus certificados de conclusão de curso parecia com um enfeite que ornamentava minha alma. E todo segundo escutava: a melhor coisa a ser feita era dedicar-se aos concursos públicos. Ter uma vida estável era o que muitos desejavam para mim. Sentia-me triste. Não exercer a profissão a qual escolhi era o mesmo que amputar um membro. Vivi dias de luto. Tudo fazia crer que era melhor rasgar meus certificados e sofrer de amnésia; só assim, poderia me dedicar a uma vida trancada dentro de um escritório.
Com baixa estima, tentava manter na minha alma a chama acesa dos meus sonhos. Como é torturante ser questionado, depreciado, julgado. Embora, vivendo uma tempestade de dilemas e aflições, preservava a faísca dos meus sonhos e acreditava que nem que fosse nos últimos dias de minha vida, iria exercer a aquilo que escolhi para minha vida. Já abalado com tantas cobranças e palavras não confortáveis, prestei concurso para professor seletista do Estado. Não era um cargo efetivo, mas temporário. Contudo, precisava sentir útil. Necessitava sentir vivo. Fazer concurso para professor temporário; perder tempo em vez de se dedicar a um concurso efetivo era muitas dos questionamentos que recebia. Na realidade, não tinha condições psicológicas para concentrar e dedica-me a um concurso que não pertence à área de minha formação. Enfim, logrei exito: fui aprovado. Nossa! Como é bom saber que é capaz; que o mundo pode ainda ter cores. Pode ser que a alegria que senti tenha sido exagerada, porém, para um ser que foi empurrado para o fundo do poço, saber que é capaz é receber as bençãos dos céus. O sol tornou-se mais radiante; a vida mais saborosa. Eu estaria a um passo de ser PROFESSOR e ter meu primeiro emprego era algo fascinante.
Fui convocado, assumi o cargo de professor do ensino médio profissionalizante. Conheci meu local de trabalho, recebi a lista de turmas em que iria ministrar aulas e tudo era mágico para mim. Estava radiante com a novidade. Oras, agora eu estava tendo a oportunidade de unir as minhas duas formações universitárias: a Pedagogia e a Enfermagem. Senti-me submerso em meio a tantos sentimentos e emoções que afloravam com a novidade. Tinha uma grande missão: educar/preparar jovens para o mercado de trabalho e essa missão era mais do que transmitir os meus conhecimentos, era uma forma de satisfazer meu ego.
Ah! Meu primeiro dia de profissional. Nervosismos; sudorese excessiva, calafrios, entre outros, faziam parte do meu ser. Não podia falhar. Era a oportunidade de conquistar o mercado de trabalho e colocar em prática tudo aquilo que aprendi na academia. Entrei na sala de aula. Fiquei alguns minutos contemplando aquela turma de primeiro ano do curso Técnico em Enfermagem. As lembranças de quando eu era pequeno veio à mente: eu estava seguindo os passos da minha mãe. Estava iniciando minha vida docente. Meu coração disparou, sentir perder o piso sob aos meus pés. Queria fugir dali, mas não podia: a parti daquele momento, eu estava entrando no mundo mágico da educação. Controlei minha emoção, meu nervosismo e comecei a conhecer a cada um daqueles que estavam sob minha responsabilidade intelectual. Os minutos iam voando e quando percebi o sinal estava soando, finalizando a aula. Ufa! Sobrevivi o meu primeiro dia de professor.
Comecei a colocar em pratica os métodos e técnicas de ensino aprendidas no curso de Pedagogia, mas a realidade é diferente daquelas encontradas nos livros lidos na universidade. A educação é muito mais heterogênica do que eu imaginava. Hoje tenho a certeza que muitos dos ensinamentos de didática não tem nenhum efeito frente a necessidades tão diversificadas dos educandos. Cada um na sua individualidade cognitiva exige um manejo adequado e que suprir as necessidades de todos se torna uma missão impossível. Com acertos e erros, estou tentando encontrar a maneira mais eficaz para penetrar no mundo cognitivo dos meus alunos. Tenho a certeza que não irei suprir os anseios de todos, mas estou disposto a suprir o maior número de alunos possíveis. Sei que não existe manuais, receitas prontas de como ser um bom professor. Porém, reconheço que o melhor método de ensino é a doação. Não uma qualquer doação, e sim, uma doação comprometida com a mudança de atitudes. Não adianta discorrer sobre todo o conhecimento acumulado pelas gerações passadas se esses conhecimentos não forem envolvidos pelo amor. Essa é a maior lição que eu estou aprendendo no exercício de minha atividade laboral: não importa o método, o conteúdo, a técnica, os recursos audiovisuais se estes não conter uma gota de amor.
Sinto-me orgulho de ser professor; em dizer que tenho como profissão a educação. Sei que muitos outros profissionais são mais valorizados e recebem da sociedade maior prestígio. Sei também, que somo marginalizados e financeiramente, recebemos tão pouco pela grande importância que desempenhamos na sociedade. Contudo, se não existisse a profissão professor, não teríamos as demais profissões. É a partir do nosso trabalho que formamos os demais profissionais. E assim, procuro no meu trabalho fazer com que os meus alunos compreendam a importância da educação na vida de cada ser. Para isto, além de transmitir os conhecimentos científicos e técnicos da Enfermagem, procurarei envolvê-los com afeto para que estes profissionais recebam durante a sua formação o que é o mais sagrado no ser humano: a subjetividade do amor. Para que no seu dia a dia possam exercer sua profissão com carinho e dedicação, ou seja, com técnicas e procedimentos que valorizem e respeitem a dignidade humana.
Hoje está fazendo um mês que iniciei a vida docente. Já dizia Paulo Freire que ninguém foge da educação e, com certeza, eu não consegui fugi. Apesar do cansaço físico e mental, acredito que fiz a escolha certa. Espero conseguir conquistar meus objetivos e quem sabe um dia receber dos meus alunos o carinho e o respeito que um dia, quando criança no passado, eu via minha mãe recebendo. Não sei até quando irei exercer a atividade de educador, porém, quando o futuro não chega, irei dias após dias fazer um momento único na vida de cada indivíduo que estiver sob meus cuidados profissionais. Não sei se receberei o titulo de BOM PROFESSOR, mas irei esforçar-me a não ser considerado o pior deles.